UM POUCO DE HISTÓRIA

 


    Desde sempre, desde que o homem é Homem, desde os primórdios dos tempos, que o ser humano se dedica à caça.

    Inicialmente esta actividade era a sua principal forma de subsistência. Necessitava de caçar para comer. E  são da época do Neolítico os primeiros vestígios arqueológicos de utensílios de caça usados pelos humanos de então.

    Desta época, encontraram-se pontas de lança e flecha em pedra lascada, pequenas facas de osso de diversos animais, e até (imagine-se) agulhas feitas de osso ou espinhas, utilizadas para unir as peles com que se cobriam.

    É também verdade que muitos destes utensílios serviam, igualmente, para a sua defesa e dos seus congéneres, mas, se atentarmos na maioria dos desenhos rupestres existentes em grutas (que então constituíam os locais de abrigo e de habitação) espalhadas por todo o nosso mundo, podemos verificar que a grande maioria relata, em pormenor, a sua luta contra as grandes feras da época ou as suas grandes caçadas de veados, búfalos, mamutes e felinos de diferentes espécies.

    Mais tarde e já no Paleolítico, os utensílios aperfeiçoam-se, o Homem passa a viver em sociedade e a sua estrutura mental dá o primeiro grande salto a caminho dos novos tempos. São desta época as primeiras armadilhas construídas para capturar animais.

    Depois, à medida que os séculos vão passando e com a descoberta do fogo e da roda, mais ainda se aguçam a capacidade e o engenho do nosso Homo Sapiens, e bem assim se aperfeiçoam de igual modo as suas armas (de caça). Primeiro fabricadas em bronze e depois em ferro, ganhando resistência, durabilidade e acutilância, as armas evoluem de tal maneira que a caça passa a ser não só uma forma de subsistência como, muitos séculos mais tarde uma forma de treino para os jovens guerreiros.

   Nesta época os animais eram  considerados (nunca ninguém pensou nisso !!) res nulius, ou seja propriedade de todos e de ninguém. Este termo é proveniente do latim,  e significava que não havia um dono para este tipo de coisas (os animais) e, assim sendo, cada um apropriava-se do animal quando o conseguia capturar ou matar. 

   Com a Idade Média - período que se inicia no século IX/X - aparece o feudalismo que primeiro define a propriedade da terra e o direito do senhor feudal não só a ocupar as terras que herdava, ganhava em batalhas ou simplesmente lhe eram doadas, como ainda a governar todos os que nelas se encontravam (viviam) e a usar tudo o que a estes pertencia ( inclusivamente a própria vida). Por esta época aparece o conceito de res regia, ou seja tudo o que se encontra nas terras é propriedade do  seu dono (o senhor feudal), desde as colheitas ao gado passando, logicamente, pela caça. E é exactamente sob o feudalismo que o conceito de caça grossa aparece e ganha importância. Ora vejamos:

    A caça de veados, corços, gamos, javalis, ursos, alces, etc. só podia ser praticada pelo rei ou pelo senhor feudal e por quem este convidava ou autorizava. Esta não só era a principal fonte de abastecimento de carne do castelo e de toda a comitiva que ali habitava, como também servia de treino de cavalarias e cavaleiros para as grandes batalhas que na época se travavam. E combatia-se a cavalo e a pé, como se caçava a cavalo e a pé.   

    Por sua vez a caça menor (assim designada não pela sua dimensão real, mas por ser de menos importância para o senhor), tinha o mesmo fim que a caça grossa mas a sua captura era deixada para os couteiros (figura equivalente ao guarda da terra e da caça), pajens e outro pessoal subalterno que partilhava a mesa do senhor num plano hierárquico inferior.

   É no século XV que o nosso soberano D. João I, escreve as afamadas obras " A Arte de Bem Cavalgar em Toda a Sela" e o "Tratado da Montaria", obras estas que atestam sobejamente a importância que a actividade da caça tinha para os reis e senhores da Idade Média. E tão bem o faz e com tal pertinência que o Tratado da Montaria ainda hoje (em pleno século XXI) se aplica e reconhece com as necessárias adaptações tecnológicas.  E tanto que assim é que, os nossos vizinhos espanhóis se dão ao luxo de o traduzir para castelhano, pela mão de outro afamado monteiro dos tempos modernos (o Duque de Almazán), tradução através da qual se estabelece o paralelo entre a forma de montear ( caçar de Montaria) medieval e a actual. E como sempre acontece com os castelhanos, o nosso "amigo" Duque atribui a autoria da obra a personalidade desconhecida...                                                         Caça ao Javali a pé e com cães

    A Idade Moderna nada trouxe de novo ao regime de exploração da terra e da caça (e do povo). Passam os séculos repetindo-se a prática, a tradição e o domínio em todo o mundo dito civilizado. Por sua vez, a colonização do continente americano  no século 18, altera de sobremaneira esta forma de pensar (e de gerir) a Natureza, uma vez que, naquele continente e por motivos óbvios, se regressa ao regime do res nulius : tudo o que existe é propriedade de quem captura, adquire ou consome, ou não estivéssemos em presença de um modelo de colonização do continente. Aliás, nesta época, este é o único lugar do mundo onde o feudalismo, propriamente dito, não impera.

   E Portugal, com a sua localização no extremo ocidental do Velho Continente, não foge à regra do mundo civilizado. A caça continua a ser propriedade do dono da terra e se bem que, em relação à caça menor se verifique uma certa permissividade no que se refere à sua captura e consumo por parte das classes mais baixas ( a fome era muita e esta, frequentemente, a única forma de subsistência), tal já não acontecia em relação à caça maior, que continuava a ser apanágio do Rei e dos nobres.

    No virar do século XIX, em função de uma deficiente organização social (na qual imperava a falta de controle principalmente nas regiões campesinas) e face ao que anteriormente se referiu, aliado à inexistência de qualquer tipo de gestão ou controle da caça e devido a um furtivismo exacerbado, as espécies de caça maior extinguem-se por completo no nosso país. O povo deixa de poder comer o "porco bravo" (javali), o cervo (veado) ou o "cabrito montês" ( corço). Apenas restam alguns exemplares de veados e de gamos, religiosamente guardados nas Tapadas Reais, propriedade da família real (Casa de Bragança) e onde só o rei e seus nobres convidados caçavam. É por este motivo que o "povo" sempre apregoou que "isso da caça é só para os ricos".

D. Carlos I caçando na Tapada de Vila Viçosa

    E estes foram os únicos núcleos de sobrevivência de veados e gamos, em Portugal até ao último quarto do século XX. No entanto, sempre houve caça no nosso país e sempre se caçou durante este período, mas apenas à  custa da caça menor. Quem se dedicasse à caça maior teria de o fazer na vizinha Espanha onde, face a um modelo rural satisfatoriamente organizado e a uma pressão de caça reduzida os veados, javalis e gamos proliferavam constituindo o prazer de muitos aficionados de várias nacionalidades. Como comparação apenas se refere que a última cabra do Gerês desapareceu em 1899 ( extinguindo-se a subespécie) enquanto os espanhóis souberam preservar o seu Macho Montês protegendo e caçando as três subespécies existentes.

   Sempre mantendo o princípio feudal de que a CAÇA ERA PROPRIEDADE DO DONO DA TERRA.

  Mas o Feudalismo também desapareceu e com ele a relação de propriedade que o caracterizava. No entanto devemos dizer que apesar de se viver desde 1910 sob um regime Republicano, o conceito de propriedade manteve-se de alguma forma inalterado. E foi o facto de haver propriedades privadas onde só se caçava com autorização do proprietário -primeira figura jurídica de terrenos acoutados (coutos e aramados) - que a caça  subsistiu no nosso país.

   Lembro-me de referir quando comecei a caçar, com 16 anos, que Portugal era uma região da Europa com excelentes condições para a criação de caça considerando que, não havendo qualquer tipo de gestão, não se fazendo repovoamentos, e caçando-se todos os dias, era possível iniciar uma nova época de caça com um número significativo de animais de cada espécie.

   Depois veio 1974 e com ele o 25 de Abril. Tudo o que era privado passou a ser público. Tudo o que tinha dono passou a ser de todos.   Todos os que eram abastados passaram a ser politicamente incorrectos e assim foram espoliados de tudo tinha valor ou parecia ter valor.

   E a caça voltou a ser res nulius, mas desta feita sem o modelo colonizador e quase se extinguiu por completo em Portugal.

  Em simultâneo, as gentes foram percebendo que a terra necessitava de ter dono - para poder ser tratada e explorada - que os terrenos tinham de ser ordenados - preparados e tratados para exploração - que a floresta era património da humanidade e que era preciso proteger o meio ambiente e que ... e que ... e que...  

   Só a caça continuou  res nulius .  

   Face a vários modelos de organização do espaço importados de outras regiões e implementados por outras gentes e talvez numa tentativa de invertermos o conceito de propriedade, criaram-se as chamadas zonas de caça ordenada,  estruturadas segundo várias formas de gestão, as quais tentamos justificar com  a necessidade de ordenamento (o termo provem de ordenar, por ordem) mas a caça continua a ser res nulius.

   E actualmente voltamos a ter caça maior em áreas confinadas e em áreas abertas, fruto do do investimento em conhecimento, trabalho e meios financeiros no primeiro caso e de alguma sorte pelas políticas de agricultura implementadas na vizinha Espanha, no  segundo caso. Este processo iniciou-se num pequeno grupo de caçadores e monteiros nacionais com alguma influência no meio político e social  de década de 80 e expandiu-se facilitando a restauração de um conjunto de recursos cinegéticos que todos julgávamos perdidos. Ao contrário e apesar de ainda nos deslocarmos a Espanha para caçar, são cada vez mais os "nuestros hermanos" que se deslocam a Portugal para desfrutar da nossa caça maior.

   E para concluir esta abordagem histórica gostaria de deixar algumas perguntas no ar, no que se refere à protecção e gestão da caça:

   - A quem pertencem as perdizes e coelhos que comprei e soltei para repovoamento na minha propriedade?

  - A que pertencem os veados, gamos e muflões que comprei em Espanha, transportei para Portugal, suportei os custos de fiscalização sanitária e soltei na minha propriedade - que tive que vedar com rede de 2 metros de altura ( que me custou milhares de euros) para que os furtivos não me os matem ???

  - A quem pertence aquele bando de perdizes que o agricultor viu no ninho e que protegeu, alimentou e guardou até que fossem capazes de voar ?????

   - A quem pertencem os javalis que hoje estão aqui e amanhã estão na minha propriedade porque lá têm alimento, água e tranquilidade ????????

   - A quem pertencem as rolas que, na migração da primavera, chegam ao meu montado e ali criam os seus filhotes com o grão da minha seara ????????????

     Se a respostas forem que são pertença de quem deles se apropriar pela captura ou morte , então temos de franquear as portas dos nossos galinheiros de quintal, dos nossos pombais e até das nossas casas a todos aqueles que se queiram apropriar do que criámos e que é nosso. Ou não será assim  ? ? ?

     Tem faltado a vontade politica ou então tem sobejado o medo de dizer (e assumir) de uma vez por todas que a CAÇA É PROPRIEDADE DO DONO DA TERRA, e convençam-se caçadores, não caçadores, ambientalistas, verdes, amarelos e doutras cores que, enquanto tal não acontecer não haverá, nunca, protecção verdadeira.                                                             

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