HISTÓRIAS DE CAÇA
Tal como prometido na página inicial, criamos aqui um espaço para histórias de caça e algumas piadas. A uni-las o facto de serem todas verdadeiras e vividas ou acompanhadas pelo autor deste domínio, ou caricatamente testemunhadas pelo autor dos textos que, como grande amigo, companheiro de caça de muitos anos e padrinho destas lides, tão gentilmente fez o favor de as ceder para tornar este espaço mais leve. E, como refere o autor dos textos:
"Para que se não percam recordações de coisas de caça e pesca . . . "
Carlos Castanha
Ainda da coletânea "Memórias para um Serão" do Carlos Lima Castanha mais uma história de Caça Maior, esta agora bem sucedida.
O MATULÃO DO JARDIM INFANTIL
A semana tinha sido escapatória com algum sol e até um pouco de calor, mas o dia aprazado para a espera foi um desastre total toda a manhã, e para o fim da tarde, o enrolado de nuvens grossas e negras, não augurava nada de famoso para a noite. Todo o caminho para a herdade foi feito debaixo duma chuvada que só parou à saída para o posto, deixando uma aberta breve para montar o aguardo. Já com tudo pronto, ainda eu media bem todo o terreno, desabou outra valente carga de água, obrigando-me a buscar refúgio no chapeirão, de larga copa, que levava de prevenção. Quase pensei em desistir de tão pouco auspiciosa noite de espera, enrolar o estojo, e voltar para o aconchego da lareira crepitante no lume de chão.Quando a chuva se transformou em apenas algumas pingas, embora as nuvens ainda se acumulassem pelo céu, voltei a ter algumas esperanças, e decidi ficar a ver o que dava o tempo. O guarda que me fora colocar dera-me a indicação dos vários porcos que frequentavam o cevadouro, e da visita de um bom macho, que entrava directo ao gasóleo antes de ir comer.
- Veja se me mata o grande, que é malino e dá porrada em todos – dissera ele num pedido esperançoso.
Vontade não me faltava de lhe satisfazer o pedido, mas as condições não eram as mais propícias. Enfim, vamos a ver o que dá – pensei, desconsolado com o frio que começava a aparecer. Ao mesmo tempo, com frio talvez a chuva não voltasse. Dediquei-me então a “ler” o posto que me saíra no sorteio.
O aguardo estava encalhado entre umas grandes pedras, com um carrasqueiro pequeno a sombrear, e escondido por um amontoado de estevas. Deitava vista sobre o comedouro, preparado mais abaixo numa pouca rala do mato grosso que ladeava o aceiro. O tronco enlameado da azinheira mais próxima atestava a esfregadela na passagem, do tal matulão.
Só restava esperar que a chuva não tivesse tirado aos porcos o apetite para a ceia. Os ruídos nocturnos começavam a encher o lusco-fusco, quando ouvi a primeira fungadela resmunguenta de um porco, nas redondezas. Aí estava o primeiro cliente para o jantar. O grande não seria, decerto, pois ainda era muito claro, mas a entrada de porcos tão cedo era bom sinal.
Do outro lado do caminho, vi passar junto ao mato escondido entre as moitas, um porco muito negro, que, cauteloso, foi dar uma volta larga e entrar a vento para a comida. Ainda este estava na borda do cevadouro a tomar ares sem se decidir a entrar, quando vi outro bicho esgueirar-se pelos passos do primeiro, e dar a mesma volta.
Quando se juntaram os dois, foi com passinhos mansos que se chegaram à comida, e provaram o petisco dessa noite. Instantes depois, pararam de comer e levantaram o focinho para o mato donde tinham saído, com uma assopradela breve.
Parecia que tinham aberto a porta do recreio no jardim infantil, pois de seguida atravessaram o aceiro direitos ao milho, uns tantos leitões riscadinhos, com pouco mais de dois quilos cada. Gozando através dos binóculos um tal espectáculo, fui contando um, dois, três,... sete, oito,...dez, onze gulositos de cambulhada a entrar no cevadouro.
Foi o fim da calmaria na clareira, pois entre corridas e chafurdices, os onze pequenos não mais pararam de correr, dum monte de milho para outro, saltando uns sobre os outros num regabofe pegado. Eram portanto duas mães com as suas ninhadas quem primeiro tinha chegado à petisqueira. Por ali ficaram depenando o cevadouro por quase duas horas.
Tempos a tempos, uma das porcas saia da clareira, ia até ao aceiro tomar ventos, certificando-se de que a pequenada podia continuar nas suas brincadeiras, enquanto as mães tratavam de encher o bandulho. Na volta duma dessas expedições inquisitórias, uma delas foi mesmo assaltada por dois dos bacorinhos, que, já cansados da pândega, reclamaram a mamada da noite. Enternecedor espectáculo este, de ter duas monitoras a tomar conta do jardim infantil, mas o tempo ia passando, a noite voltava a ameaçar chuva e do prometido matulão nem sinais.
Por vezes, um dos pequenos mais belicosos ou mal comportado era severamente advertido por uma das porcas, com uma fiada breve e uma boa fungadela, ou focinhada a preceito. Mais guincho, menos ganidela e tudo voltava à ordem e recomeçavam as cabriolas e corridas dos porquitos.
De súbito, a porca mais nova parou de comer, correu ao aceiro e ficou expectante de orelhas fitas. Virou a cabeça para trás, com uma roncadela curta chamou a sua descendência, e, seguida dos filhotes desapareceu no mato. A outra, maior, ainda olhou para a fuga da amiga, mas talvez por confiar na sua corpulência, deixou-se ficar retoiçando o milho, rodeada dos seus pequenotes. Só quando se ouviram passos pesados e vagarosos, denunciando um porco que se aproximava por entre as estevas, parou de comer e chamou os filhos para junto a si.
De imediato os riscadinhos se aconchegaram uns aos outros atrás da protecção do corpanzil materno. Por instantes nada buliu no terreiro. Mãe e filhos imóveis, ela com o pêlo eriçado e orelhas em pé, eles temerosos sem saber bem o que se passava, miravam um canto do cevadouro.
A sombra negra que se confundia com uma moita avançou vagarosa para o meio do claro, fungando forte a abrir caminho para a comida. Mais não foi preciso para afastar bem para a borda da clareira, a mãe e os filhotes.
Apenas o grande porte da fêmea, a fez ainda ficar por ali talvez na esperança de mais uns grãos de milho. O matulão do macho, ciente das suas prerrogativas, abocanhou vagaroso dois punhados de milho, sem ligar aos outros convivas. Depois rodou à volta do comedouro, cheirando os rastos que ali havia e dirigiu-se para o lameiro do gasóleo, para se esfregar como de costume.
Desiludido, olhou para a banha que, com a chuva de hoje, não passava de uma poça de água gordurenta. Pouco satisfeito por não poder catar a bicharada voltou as atenções para os grãos, tasquinhando o milho raivosamente.
De vagar a fêmea avançou uns passos, arriscando mais umas doses de comida. Os porquinhos, sempre atrás da mãe, voltaram ás suas brincadeiras, agora mais comedidas. O matulão não lhes dava importância, limitando-se a uma leve assopradela se algum se aproximava em demasia. Ainda foi cheirar a grande fêmea, talvez com outras intenções, mas esta voltou-se indignada com tal comportamento ao pé dos menores. Quem sabe se por isso ela se afastou para o aceiro, chamou com um ronco os filhos, e desapareceu dentro do mato com passo leve.
No meio da cena, estava agora o macho sozinho continuando a afocinhar no milho.
Era altura de eu me decidir a desempenhar o meu papel. Bem já tinha gozado uma noite, que de início pouco prometia. Meter o bicho dentro do óculo não tinha problemas, mas centrar o retículo no ponto certo era outra coisa. A pouca luminosidade que se filtrava pelas nuvens, era suficiente para ver toda a silhueta do porco com os binóculos, mas com o visor outro galo cantava. Eu bem o tinha apontado, mas não queria desperdiçar um tiro mal colocado, com todos os seus inconvenientes. Teria de aguardar uma aberta das nuvens, nem que fosse pequena, para tentar o tiro.
Os minutos que se seguiram foram de um desespero imenso, na expectativa de uma saída de cena do actor principal. Seria um final sem brilho para uma tão bela representação.
Assim que tive um pouco de melhoria na visão não esperei mais. Com a carabina bem segura e o gatilho de cabelo armado o tiro partiu sem demora.
Ouvi perfeitamente o impacto da bala na caixa do porco. De certo que lhe acertara. Mas, seco não ficou..!
Quando cheguei ao cevadouro para pistear o rasto, o rego de sangue vivo indicava um tiro certeiro e a fuga decerto seria curta. Uns vinte metros à frente, na pista bem marcada, lá estava já morto o Matulão do jardim infantil...
Contenda, Maio 2001
O nosso grande amigo Carlos Castanha, conta-nos mais uma engraçada história de Caça, esta também verídica e passada no longínquo ano de 1995, na herdade do Postor , Reguengos de Monsaraz. Trata-se de um facto interessante para quem gosta de caça : trocar o tiro a um javali, por outro tipo de tiro bem diferente.
AS SECRETÁRIAS DO BIG BOSS
Anos atrás, o cinema americano, e as anedotas com cartoons davam uma imagem da secretária particular que hoje já não corresponde à realidade. Dantes era uma belíssima loura platinada com longas pernas bem lançadas, uma cara de capa de revista e um corpinho com montes de curvas em sítios onde outras meninas nem sequer têm sítios. Sentada nos joelhos do patrão, mini-saia a meia coxa, e com um ar celestial, anotava diligente os tópicos duma carta comercial. Hoje em dia o patrão assenta nos joelhos um Lap Top descorado e tísico, que, em vez de cara, tem um ecrã de cristal líquido. Outrora o patrão beliscava delicadamente o traseiro rijo da secretária. Agora limita-se a introduzir no sistema operativo uma disquete sem vírus. Até a indústria automóvel foi afectada com a mudança. Já não é necessário comprar todos os anos um carro para a pequena, pois um PC cabe perfeitamente no seu saco de transporte. A actividade hoteleira também perdeu com a troca. Acabaram os fins-de-semana de trabalho, em suites de aldeamento, à beira mar, por troca com um single no hotel mais próximo do local da reunião. Enfim, já nada é o que era... Existem todavia excepções, e é duma delas a história presente. Há poucos anos, um dos nossos mais bem sucedidos empresários teve de se deslocar ao estrangeiro, em viagem de negócios, com uma firma do mesmo mister. Por um feliz acaso, tanto ele como o presidente da firma de lá, tinham o mesmo entretêm desportivo nos seus tempos livres. Eram ambos devotos seguidores das doutrinas de Santo Humberto. Conhecedor desta paixão, o Big Boss convidou o nosso amigo para uma estada, mais longa e repousada, numa sua coutada. Foram então dois dias de árduo labor para obter uns bons troféus de veado e muflon, que antecederam os noventa minutos que durou a reunião de trabalhos comuns. Encantado com a recepção de que foi alvo, de imediato pensou em retribuir na mesma moeda ao seu anfitrião, quando este, no mês seguinte, viesse ao nosso país para visitar a sua indústria. Foi então que decidiu contactar-nos, conhecedor das nossas matilhas e do nosso couto, a fim de oferecer ao colega uma caçada ao javali por terras alentejanas. Sendo nosso amigo e companheiro de caça estava já habituado aos resultados que costumávamos ter nas nossa montarias bem assim como ao excelente almoço com que brindávamos os convidados. Para nós foi um prazer podermos corresponder condignamente à solicitação dum bom amigo. A coisa foi então organizada do seguinte modo: receberíamos os caçadores e acompanhantes com um pequeno-almoço substancial, dado que sairiam de Lisboa pela manhãzinha, e antes da função havia que recuperar forças. Para uma meia dúzia de portas como se esperava, faríamos um gancho numa soalheira de mato que descia para o Degebe, colocando as portas ao longo de um barranco que chegava ao rio. Como o local era muito querençudo da porcalhada, contávamos que com uma passagem dos cães saíssem às portas dois ou três bácoros para animar a manhã. Posto isto viria uma parte importantíssima da jornada de caça: o almoço... Essa fora uma das mais recomendadas demandas do nosso “cliente”. E assim foi, tudo bem tratado. De véspera fomos marcar as portas, escolhendo as centrais, de mais esperançoso aspecto, para os dois presidentes. Uma e outra foram alvo de melhoria de condições de tiro, e levaram uma limpeza de estevas, de modo a deixá-las cómodas de acesso mas conservando-as invisíveis à aproximação de um barrasco. A embaixada chegou à hora prevista, apenas com um ligeiro atraso, e tinha à sua espera um café fumegando um aroma delicioso. Pão caseiro encomendado especialmente e ainda quente, queijinhos frescos acabados de chegar, duas belas compotas de fruta, e leite e sumos para quem preferisse, compunham a mesa. Bom, mas isto era só a entrada, pois de seguida caíram nos pratos umas migas com carne de porco frita, umas febras a rechinar e um chouriço assado, com que só com o cheiro, se bebiam uns copos do tinto regional que vinha a acompanhar. Os carros pararam à porta do monte despejando o grupo de caçadores e acompanhantes. De um, saiu o presidente de cá com o irmão, e um amigo para servir de intérprete, que a língua do outro era arrevesada. De outro saiu o adido comercial com o presidente de lá, que trazia com ele para qualquer despacho inesperado, não uma, mas duas secretárias... Só que o homem era de espírito conservador, à antiga, e fazia questão de ter como secretárias dois modelos de capa do Play Boy, que eram um regalo para a vista. Fizeram as honras ao desjejum com uma vontade que só visto. Se esperavam umas simples torradas e chá, a troca deste pelo tinto e das tostas pelas migas, não os desiludiram. Até as pequenas, que de início estavam um pouco encabuladas, não se acanharam de picar nas febras e, depois de trocarem o leite pelo Reguengos, já riam e falavam connosco como velhos amigos. Chegada a hora da batida havia que armar o grupo de caçadores, pois vestidos a preceito já eles vinham. Mesmo as duas louras pareciam manequins de uma boa loja da especialidade, com os seus trajes de caça austríacos. O nosso amigo, como pessoa previdente, tinha providenciado esse aspecto da questão. Abriu a bagageira do seu carro e dele começaram a sair carabinas de caça grossa de alta qualidade e modelos maravilhosos, só comparáveis, em aspecto, às duas beldades. .Mais parecia o mostruário de um armeiro de luxo, do que o fornecimento para emprestar a mãos alheias. Mal empregadas armas de altíssima qualidade, em mãos que não as do dono! Com tudo pronto, rapidamente coloquei, um a um, os caçadores em seu posto. Ao longo do caminho que ladeava o barranco fui deixando os animados intervenientes no gancho, indicando a cada um a provável passagem dos porcos. Dobrados, só os postos presidenciais, em que cada um ficou acompanhado de uma das secretárias, todas alegres e excitadas com a perspectiva de uma boa montaria. Não levou senão uns dez minutos para dar sinal ao meu sócio, que iria orientar o trabalho dos cães, para fazer a solta e começar a caçada. As costumadas ladras e gritos de incitamento do nosso matilheiro não tardaram a espantar os bichos na direcção das portas, onde, tal como eu recomendara, tudo se conservava em silêncio. Agora já nem mesmo as risadas joviais das duas caçadoras se ouviam. Apenas os usuais sons do mato desciam pelo barranco até à porta em que eu como postor fechava a linha. Soavam cada vez mais perto os latidos dos ponteiros indicando aos restantes cachorros uma fuga de rezes para a encosta onde estávamos. Um grito do matilheiro ecoou pelos ares. -Vai porco! Virei então as minhas atenções para o caminho que tínhamos percorrido e mais ou menos para o local onde deixara os dois chefes e respectivas companheiras. Não demorei a ver surgir, aproximadamente a meio dos dois postos, dois bácoros de tamanho razoável, que passaram às portas descendo para o barranco, subiram a encosta fronteira e desapareceram nas estevas sem que um só tiro se ouvisse. Logo atrás passaram os cães em sua perseguição e o matilheiro que os incitava a um agarro. Tal como eu esperava, em breve aumentou a algazarra dos cães e os guinchos dum porco indicativos de ter sido alcançado. Pouco depois o silêncio indicou-me que o gancho estava feito, e do rádio saiu a indicação do meu sócio para recolher as portas.
Foi quase em corrida que voltei pelo caminho, curioso em saber por que motivo ninguém atirara aos bichos, que deveriam ter passado quase por cima dos dois caçadores. Ainda receei que o pequeno-almoço tivesse caído mal a alguém, ou algo de semelhante. Mas não. Tudo estava bem e com óptima disposição, e as duas moças riam e conversavam entre si na sua alegre algaraviada, todas coradas e satisfeitas com uma tão forte experiência. Ambos os caçadores apresentaram desculpas por não terem atirado mas a velocidade dos javardos não o permitira. Faltava apenas cumprir a última formalidade do programa: o almoço… Para este, tínhamos mandado preparar um ensopado de borrego, prato típico da zona, e que sabíamos ser muito do agrado do nosso amigo. Não vale a pena descrever o entusiasmo com que todos os presentes atacaram o petisco, bem regado e acompanhado, bisando e repetindo quanto quiseram. No final ainda arranjaram espaço para desbastar uma encharcada caseira, e foram terminar a lauta almoçarada com o café, digestivos e umas valentes baforadas de bons havanos. Quando deram por terminado o almoço foi tempo de fotografias de “souvenir” junto à porca agarrada pelos cães, que teve honras de vedeta, como se fosse um navalheiro. A meio da tarde, bem comidos, bebidos e satisfeitos com a jornada de caça, voltaram para casa, levando o Big Boss uma excelente impressão da montaria à portuguesa.
Eu é que desconfiava da forma como decorrera a caçada, e depois de tudo acabado, chamei de parte o meu matilheiro para lhe perguntar o que se passara.
-Oh Manel, tu que vinhas logo em cima dos cães, diz-me cá porque ninguém atirou aos porcos..?
Respondeu-me no seu linguarejar atravessado.
-Tão o patrão nã quer saber, que os dois móiorais tavam tã avezados cas moças, quinté se rentaram nos bácoros...
Postor, Novembro de 1995
Acontece ao mais pintado, e que ninguém diga…a mim não!
O primeiro caso tem já alguns anos, e aconteceu numa montaria na Contenda.
O herói é um dos nossos amigos monteiros, nessa época já com saber e experiência mais do que suficiente para não se deixar entalar, mas que acabou como tantos outros, aprendendo mais esta lição.
O dia, que nascera escuro e enevoado, não permitia pensar em grandes mudanças, e foi com grande alívio que se festejou a meio da manhã o aparecimento do Sol.
Na temperatura, porém, nem se notou a diferença e o fresco da madrugada continuou por todo o dia, enregelando os ossos de quem tinha de estar parado.
O posto que saiu em sorteio ao nosso amigo era na base de uma encosta bem coberta de mato forte, descendo em declive, não muito acentuado, até um plateau limitado pelo Murtigão.
E na margem deste, junto aos juncos verdejantes que a cobriam, estava camuflada a porta. Tinha um campo de tiro óptimo, quer na chapada quer no mato mais ralo da parte lisa. Melhor nem de encomenda!
O único senão seria talvez o marulhar da correnteza que o ribeiro levava nesse dia, e a consequente dificuldade em ouvir os passos leves de um porco a escapar.
A ribeira do Murtigão, que normalmente se limita a escorrer preguiçosa no leito estreito e baixo, tem sítios que se atravessam num pulo, mas, daquela vez, as águas da chuva da noite anterior fizeram-na impar de orgulhos mal contidos, e levava para aí uns trinta centímetros de altura.
Paciência, se fossem só facilidades não dava gozo nenhum.
O morteiro de início da caçada ecoou na manhã farrusca e, em breve, os ladridos da cachorrada correram pela mancha pondo em sobressalto toda a fauna da reserva.
E se alguns ainda se quedaram à escuta do inusitado barulho, porcos novos e marrãs paridas, outros como os veados e cervas, não perderam tempo a pôr entre eles e a algazarra, a maior distância que podiam.
Foi assim que o nosso caçador, logo de começo, teve na mira umas pepas, de corrida leve, e até um ou dois cornudos que já mereciam chumbo. Se nessa manhã a montaria não fosse só aos porcos…
“Valendo atirar aos veados, se calhar não me saía nada” – pensou o desiludido espectador de tanta fartura.
De repente saltaram das estevas duas perdizes, levantadas a meia encosta por algo estranho. Tanto foi o suficiente para despertar a atenção do caçador.
A resposta automática ao estímulo levou-lhe a carabina ao ombro como se fora uma caçadeira, enquadrando uma das aves no visor e seguindo-lhe o voo.
Quase lhe passava mesmo por cima, e numa simulação dum bonito coup de roi, mentalmente puxou o gatilho num tiro em seco. Numa qualquer batida teria sido um belo tiro!
Firmou agora a atenção no sítio donde se levantaram as perdizes. Algo as tinha feito saltar tão assustadas para, em vez de se escaparem a pés, terem levantado voo assim.
Por entre os vimes das estevas descobriu o esgueirar sorrateiro de uma raposa que fugia, também ela, ao encontro problemático com a canzoada.
Seguiu-a com o olhar até a perder entre a vegetação, para logo voltar a encarar o mesmo ponto da encosta, na esperança de que coisa mais volumosa, e merecedora de um disparo, se vislumbrasse.
Quase no mesmo ponto viu começarem a abanar as estevas, sacudidas por algo que se movimentava sem grandes cuidados, denunciando uma fuga que bem podia ser dum porco.
E lá vinham não um mas dois porcos a escapar pela encosta abaixo separados apenas por alguns metros.
Do outro lado do cabeço ouviam-se agora cada vez mais perto os latidos dos ponteiros, guiando os compinchas na perseguição.
Os bácoros não eram grandes mas logo no início da função, a hipótese de um doble era golpe a não desperdiçar. Já não seria o primeiro mas as ocasiões têm de ser aproveitadas.
Esperou imóvel que os porcos descessem até ao mato baixo, deixando-os cumprir a rigor, e para os apanhar a jeito de tiro limpo e seco.
O da frente iria passar-lhe à esquerda a uns escassos dez metros quando atravessasse o ribeiro.
Atirou-lhe a poucos passos da margem.
Quando lhe pôs a mira em cima estava tão perto que toda a objectiva se encheu com a imagem desfocada do corpanzil peludo, tirando-lhe todos os pontos de referência para a colocação do tiro.
Ao estrondo da “7 Magnum” logo se seguiu a queda da rês que ficou a espernear na borda do riacho, entre os juncos.
Recarregar e procurar o outro animal foi obra de instantes.
Este porém, ao ouvir o forte disparo, meteu travões a fundo, deu meia volta cortando novo caminho para o abrigo dos matos, e pondo o “turbo” a funcionar desapareceu por detrás de uns carrasqueiros sem dar tempo a visar em condições de fazer fogo.
Paciência! Pelo menos um ficara. Agora só faltava ir rematar o bicho com um golpe misericordioso de faca, evitando sofrimentos desnecessários.
Respirou fundo o caçador a recompor-se da emoção já conhecida mas sempre nova, que um tal lance desperta. A lufada de ar frio que lhe chegou aos pulmões ajudou a fazer descer a pulsação e acalmar o pensamento.
Agora já descontraído e sereno, encostou a carabina travada ao banco de caça, sacou a faca de remate da bainha, pendente do cinto, e aproximou-se do porco, que ainda mexia, para a fase final da cena.
A lâmina afiada deslizou entre as costelas por trás da mão do bacorinho, como agora verificava ser o que lhe jazia aos pés, e não o imaginário porco grande que se lhe tinha afigurado ver há pouco, através do óculo.
O porco é que não tinha nada de tendências para mártir empalado.
Ao sentir o contacto do aço frio a roçar o escudo da espádua, num salto repentino ficou de novo em pé nas quatro patas e arremeteu furioso contra o caçador, espantado com tal reacção.
Apanhado desprevenido o homem deu um passo ao lado fugindo à investida, sem se dar conta da margem mole e lamacenta escondida pelas ervas.
O escorregão da bota para dentro do lodo foi o princípio do desequilíbrio que acompanhado de nova trombada do porco estatelou o caçador de costas dentro de água.
Agora estavam porco e caçador esparramados no meio da correnteza, ambos inevitavelmente encharcados.
Para aumentar ainda mais a confusão, chegavam, aos saltos para dentro da ribeira, meia dúzia de cães que rapidamente imobilizaram o porco, acompanhados do matilheiro que num ápice pôs termo à questão.
O caçador, ensopado como um pinto, recuperou das águas a faca de remate e ajudado pelo matilheiro trepou para seco e foi enxugar-se como pôde.
Começava já a tiritar de frio quando o outro o interpelou:
--Então compadre, veio a banhos p’ró Murtigão..???
Um riu com vontade, enquanto o outro esboçou apenas um sorriso amarelo…
Mais tarde na abertura dos porcos ficou esclarecida a miraculosa ressurreição do bicho.
Quando o caçador o teve no visor apenas via um desfocado monte de pelos, e sem qualquer noção da anatomia do bácoro, meteu-lhe um tiro alto a roçar a espinha, que sem ser mortal apenas o paralisou momentaneamente.
Só o impacto e o choque foram no entanto bastantes para o derrubar. Os estragos que a faca causou ao cortar os órgãos da caixa torácica, provocando grande perda de sangue, foram a causa da morte do porco.
Mesmo assim foi dando tantos trabalhos que se rendeu. A vitalidade de um bicho, ainda que pequeno, é enorme e, ás vezes, só vendo dá para acreditar!
De toda esta história há duas ilações a tirar:
Uma, que toda a qualidade e eficiência duma 7 Magnum foram desbaratadas perante a deficiente colocação do tiro. Fosse ele in su sítio e o resultado seria outro, mesmo com calibre menor ou mais fraco.
Outra, que com porcos, mesmo pequenos, nunca serão demais todos os cuidados ao entrar a remate. Fosse ele um porcalhão de respeito, e o nosso amigo talvez não se safasse só com a banhoca…
Contenda, Dezembro de 1998
Esta história é factual e ocorreu em Cabeça de Porco num fim-de-semana do tão chuvoso Inverno de 2001.
Quando uma mancha é devidamente preparada por gente competente, o número de portas e a sua localização são assunto encerrado e se o organizador colocou a porta aqui e não ali, ele lá terá as suas razões. Do mesmo modo, ele por certo que calculou o número mínimo de portas necessário para fechar a mancha, e se poderá, à última hora, arranjar um posto para um caçador que não era esperado, o contrário é sempre um problema. Ainda se consegue tapar um buraco com um postor, guarda ou matilheiro, mas se falta muita gente está tudo mais complicado. Pensa-se em eliminar uma ou outra porta que se considera de menos crença, por estar perto da solta, por ter vento menos bom ou um posto de travessa que talvez seja dispensável, e o mais certo é ficar um buraco no cerco da mancha.
Pois podem ter a certeza que é por lá que vai passar o grande ou aquela vara que se esgueirou por onde adivinhou não estar ninguém.
Além disto há sempre a tendência para, no fim do sorteio, querer trocar a porta com aquela que ficou vazia e que parece sempre ser melhor do que a que nos tocou. Como aparte pessoal, direi que, por experiência própria já antiga, nunca mais troquei a minha porta com outra qualquer. Creio que já nos aconteceu a todos. E o resultado é sempre o mesmo...
Pois nesta montaria uma vez mais se cumpriu a tradição. O mau tempo e o frio a desencorajarem os menos afoitos ou menos viciados e após o sorteio a ficarem em cima da mesa duas ou três portas. E começou a dança:
Esta é melhor, a minha tem mau vento, fico com os cães às costas, etc... etc...
Como de costume um voluntário para ir tapar um buraco foi de imediato mobilizado, e um artista espontâneo quis trocar a porta com uma das sobras.
Pois é este iluminado o personagem central desta história.
A porta que lhe saíra no sorteio era uma das tais com a solta dos cães por detrás, no começo de uma linha de água que descia para um barranco sujo, e dando costas à Contenda, o que, nem mesmo por ser uma das fugas prováveis, o convenceu a ficar com o posto. Como uma das portas livres era no fecho da ribeira da Safareja, com ela se embeiçou e a trocou pela a sua. Bem que lhe disseram para não trocar mas estava dito e feito.
A ribeira que durante a maior parte do ano não passa de uma linha de silvados e loendros resistindo teimosamente apenas com a humidade, estava transformada com as chuvas contínuas do Inverno num forte caudal espumante, qual torrente gelada de montanha. Não era nem muito larga nem muito funda. Sítios havia com um escasso metro de largura ou uns dois palmos de fundo, mas, por via das dúvidas, tinha sido improvisada uma ponte na passagem da armada.
Nada mais desconfortável do que passar uma manhã de caça com os pés todos enregelados dum passo mal medido ou duma bota metida num fundo inesperado.
Na ida para o posto toda a armada atravessou a ponte seguindo a distribuição das portas na habitual bicha de pirilau com toda a compostura e silêncio que se impunham para a colocação de um fecho de mancha. O dia pouco ou nada melhorou com o passar da manhã, e os muitos tiros que se ouviram mesmo assim não foram nada do esperado. Embora aquela armada fosse das mais querençosas e com expectativa de melhor resultado, o nosso amigo passou a manhã a ver navios, e de nada lhe serviu ter trocado de porta. Nem pêlo por ali se dignou a aparecer e nem mesmo o saldo final das capturas da armada se salvou.
Com o frio e humidade grossa que se sentiu todo o dia, a bicharada resolveu emigrar para zonas mais altas e solarengas, dum sol envergonhado e descorado que de vez em quando fazia a sua aparição momentânea. No regresso para a concentração o nosso herói e mais dois companheiros decidiram cortar caminho por um aceiro em frente dos seus postos, em vez de calcorrear de novo todo o caminho percorrido de manhã. Na verdade atravessando a Safareja ali perto, era muito menos caminho do que dar a volta até à ponte. Ela apenas tinha no local uma largura que facilmente era vencida com um salto e parecia não apresentar qualquer dificuldade.
E lá vai disto. O primeiro caçador larga a tralha e, num pulo bem calculado, aí está ele do outro lado.
Uma a uma as armas, mochilas, bancos e outras imbambas voaram para o lado oposto da ribeira, recebidas em segurança pelo primeiro acrobata. Outro se lhe seguiu com a mesma habilidade, aterrando na margem da ribeirita em óptimas condições. Por fim foi o nosso homem, que num impulso ligeiro pôs o pé uns centímetros mais à frente do que devia e num salto escorregado na borda voou para o talude oposto que atingiu à justa para se desequilibrar e estatelar de rabo no fundo aquoso do obstáculo.
Rápido se pôs em pé e ajudado pelos risonhos comparsas de aventura, lá subiu para a margem espichando água das botas e escorrendo das calças e casaco que nem um pinto...
Valeu-lhe a muda de roupa precavida num saco plástico que tinha no jipe. Safou-se à justa de uma gripe ou mesmo de outra maleita, pois o seu físico foi devidamente imunizado de pronto com uns goles de whisky.
Porém, se fisicamente tudo correu pelo melhor o mesmo não se pode dizer do lado psicológico. Por certo nunca mais esquecerá o banho, nem a troca da porta sorteada que desprezou. O “desterrado” que para lá foi, teve que matar dois bons javalis, deixar passar uma vara de não sabe quantos, por se lhe ter encravado a caçadeira, e ainda despachar um veadeco, que na medição deu medalha de prata...
Cabeça de Porco, 27 Jan. 2001
A propósito da Forma de Estar na Caça e das novas (antigas?) polémicas sobre o que é e sobre o que não é correcto na prática cinegética, um colega meu escreveu para o Fórum do portal Alvorada um texto que me pareceu soberbo não só pelo seu conteúdo em si, mas acima de tudo pela saudade que transmite às novas gerações. Apesar de não se tratar de uma História de Caça propriamente dita, aqui a publicamos com o objectivo de possibilitar outro (mais um) entendimento para este nossa paixão.
Bem haja amigo António Reis.
Na caça, como no sexo, há
a antecipação, a concretização e a evocação. Quando as coisas são como devem
ser, desfrutamos destas três fases, embora em graus não necessariamente
idênticos. À primeira vista e numa situação normal, deveria ser a fase da
concretização a proporcionar a parte mais significativa ao nível das sensações
mas nem sempre isso se passa e pelo menos no que à caça diz respeito, ainda bem
que assim é.
Quando comecei a caçar legalmente, no início dos anos 70, a intensidade da
antecipação era arrasadora. Invariavelmente, não conseguia “pregar olho” na
véspera das caçadas o que, depois, pagava na longa viagem de regresso, caindo
como um morto no banco do carro para só voltar a dar sinais de vida em frente à
porta de casa, ignorando completamente as tropelias a que, entretanto, me
sujeitavam os companheiros.
Fruíamos o então presente com a naturalidade própria da juventude, sem grandes
dúvidas, interrogações ou angústias, não tínhamos de todo a noção de que
estávamos a viver os derradeiros anos de uma época de ouro no que à caça diz
respeito.
Não havia IPs nem auto-estradas, telemóveis ou Internet mas também ninguém
suspirava por eles e as coisas organizavam-se dentro de uma normalidade que
agora parece irreal. Caçava-se todos os dias que a vida de cada um permitia,
sempre com os mesmos companheiros na linha e, muitas vezes, já a viagem ia a
meio e ainda havia discussão sobre o local exacto onde a caçada se iria
desenrolar. No meu círculo de relações, a caça era uma actividade viril de
contacto íntimo com a natureza mas também uma afirmação de liberdade e
responsabilidade, escola de cidadania com a sua praxis exclusiva, conhecimentos
e normas de conduta partilhados, assimilados e praticados num processo que
envolvia camaradagem e respeito ao estilo das guildas medievais e para o qual
não vislumbro hoje qualquer sucedâneo.
Os protagonistas, galeria interminável de figuras pitorescas de uma banda
desenhada em que as personagens eram os próprios intérpretes, oferecendo-se a
qualquer aprendiz de escritor já baptizados a preceito, o Zé Bate-chapas, o
Carlos Histérico, o Pansóla, o Vítor Careca, com as suas caçadeiras de canos
laterais nove em cada dez, Colibri, Sarrasqueta, Robust mais uma ou outra FN de
cinco tiros que, curiosamente eram a escolha de alguns dos mais finos atiradores
e dos maiores marteleiros, que as descarregavam numa cadência de metralhadora -
permitindo-nos saber sempre, à distância, onde é que andavam - e os cães,
geralmente de tipo se não indefinido pelo menos bastante vago, mas lendários
alguns, de bons que eram…Caçam agora quase todos noutras paragens, onde talvez
sintam de novo a animação do antigamente. Dos que restam contam-se pelos dedos
das mãos os que ainda tiram a licença.
Com o passar dos anos, a maravilhosa caça banal de salto, praticada por muitos
nós, agora já a entrar no Outono da vida, como a tinham praticado os nossos pais
e avós, foi sendo desfigurada de forma radical e irreversível. O declínio do
terreno livre, sentenciado por diversos factores, foi o réquiem dessa época de
ouro.
Dizer-se que da caça ficou apenas uma caricatura de má qualidade, que pouco mais
lhe recuperou do que o nome e os tiros é talvez um exagero mas muitas vezes
penso que os caçadores da nova geração, os meus filhos, por exemplo, não fazem
sequer uma ideia daquilo de que estou a falar e ainda bem, porque são assim
poupados ao profundo desencanto e sentimento de perda que não consigo nem quero
ignorar.
Hoje em dia tudo é complicado e artificial, muitas vezes num grau que roça o
ridículo. Resignados lá nos vamos sujeitando ao delírio dos que tutelam a
actividade, comprando cadeados e cofres, coleccionando o dossier de documentos
que precisamos para, com sorte, podermos legalmente ir com uma espingarda ao
campo, tentando simultaneamente cumprir as múltiplas condicionantes da lei geral
e do regulamento da ZC, levantar credencial à hora x, já o sol vai alto, ir
recambiado para a zona z, limite de tantas nos dias pares, nos dias impares não
esquecer só se pode… etc., etc., e ao meio-dia pára tudo!
No entanto, continuamos, alguns, teimosos, sem querer admitir que já somos deste
“filme”. Resta o calor da amizade que parece resistir melhor do que as lebres,
as perdizes bravas e os até os próprios sobreiros, que de há um tempo a esta
parte deram em morrer também.
Com o insensível mas inexorável deslizar dos anos, e já lá vão tantos, se o
prazer da antecipação não se desvaneceu por completo, perdeu, pelo menos, o
saudoso carácter excessivo dos primeiros anos, o que me deixa triste e
interrogativo.
Por outro lado e não é com certeza por acaso, antes vejo nisso a mão sábia de
uma qualquer providência, como que para equilibrar as coisas, o que vai faltando
na antecipação acresce nas evocações que se vão avolumando ao ponto da gestão
dos pormenores escapar ao rigor da memória. Episódios, personagens, peripécias,
uma frase ou uma palavra apenas, momentos especiais por qualquer motivo, voltam
à memória, acondicionados numa não desagradável névoa diáfana que lhes adoça as
marcas de tempo e espaço, tendendo a ficar apenas o registo essencial. Aquele
magnífico perdigão, de asa, que tanto trabalho deu a cobrar mas salvou a grade
foi onde? E outra vez em que o …"
É assim que eu vejo a caça, e afinal está cá tudo, os lances, as memórias, a
amizade...
Outro Baptismo
Quis a sorte proporcionar a um homem, a ventura de ser baptizado já na casa dos setenta anos…….
Era o que se considera um veterano nestas coisas da caça. Muitos anos passados por Portugal, na Europa e em África, sofrendo por esta paixão de todos nós, mas ao mesmo tempo obtendo troféus que a maioria nem sabe que existem. Medidor oficial e conselheiro internacional de alguns organismos cinegéticos tinha todo um saber e uma experiência larguíssima, em todos os assuntos relacionados com caça, vindos de uma vida bem usada.
Mas não há bela sem senão, e a este caçador, ocorria muitas vezes a única lacuna que tinha entre os seus troféus, e a muita pena de verificar, a cada dia que passava, a cada vez maior dificuldade de obter tão almejado objectivo.
De África, tinha os cinco grandes já registados. Da Europa, tinha tudo o que quisera fazer. Mas do seu querido Portugal, tinha o pesar de nunca ter conseguido, nem um bom troféu, nem sequer um exemplar representativo… do Lobo Ibérico.
Havia anos que, tanto ele como muitos outros caçadores penavam o difícil calvário das montarias no Nordeste Transmontano, sempre na esperança de uma vez poderem ter a sorte de vislumbrar, pela mira da sua arma, a silhueta desejada. Mas não era fácil, pois, já nessa altura, os bichos eram raros e esquivos, e se bem que os pastores deles se queixassem com razão, poucos os viam à luz do dia.
Nessa manhã solarenga mas gelada, diziam os organizadores da montaria, a mancha estava recheada com bons exemplares de javali, havia corsos, e até estava referenciado um casal de lobos. A tudo se poderia atirar e, embora muitos pensassem tratar-se de mais um exagero da organização, a esperança e expectativa aumentaram.
A armada em que fiquei era numa travessa e como tal a última a entrar na mancha. Após uma descida acentuada para o fundo dum barranco, cruzei a armada de fecho, precisamente no posto onde o velho Monteiro, acompanhado como era habitual pela esposa, lia já os trilhos do mato.
Para mim foi mais uma caçada sem grandes emoções. Muitas ladras e reboliços, muitos tiros e animação em outros pontos da mancha, mas no meu posto, junto ao regato, entre tojos e silvados velhos, nada passou. Foi até com algum alívio que ouvi o morteiro final, pois o frio e a fome causavam já um grande desconforto.
Na volta foi com profunda admiração, e direi mesmo alguma inveja, que recebi a notícia de que o idoso casal fora presenteado com a hipótese de atirar a um dos lobos e que andavam os guardas e matilheiros a procurar o rasto. Quando chegámos à concentração, não se falava doutra coisa, sendo conversa obrigatória entre todos a possível concretização de um sonho antigo. E quando chegaram as primeiras rezes abatidas, bem em destaque em cima do tejadilho duma carrinha, lá vinha o bonito lobo que assomara numas fragas frente ao posto onde o tiro rápido e certeiro do Decano não falhara!
Com todo o respeito que merecia aos outros caçadores a sorte do velho Monteiro, logo foi encenada a cerimónia baptismal que se impunha em tão solene e ansiada ocasião. Rapidamente lhe despiram o casaco que, só por uma deferência extraordinária, foi substituído por um velho impermeável. Sujeito a julgamento sumário, a condenação foi de imediato pronunciada e a pena decretada e executada.
Agora de pé, e com o corpo do lobo atravessado sobre os ombros, recebia da multidão em delírio os aplausos e felicitações da ordem, com que todos os amigos ou simples conhecidos o brindavam. Lembro-me ainda de algumas lágrimas de pura felicidade que escorreram pelas rugas da sua face emocionada, e corada, com a enorme satisfação.
A mãe Natureza concedera-lhe, por fim, tal mercê….
Montaria da Cerdeira, em Bragança a 20 de Fevereiro de 1986
P.S. Mais uma vez aproveito a oportunidade para prestar respeitosa homenagem à memória de Jorge de Andrada Roque de Pinho, pois foi ele o protagonista desta história.
O VELHO SENHOR
Decididamente hoje não estava nos seus melhores dias. Aliás nos últimos tempos tinha tido vários destes acessos de má disposição e mau humor, juntos com uma melancolia que não conseguia bem explicar. Mas, desde a Lua de há dois meses, quando lhe haviam morto o seu fiel escudeiro, que assim tinha ficado. Sofrera o desgosto da perda de um dedicado companheiro, a quem tinha ensinado quanto sabia da vida e tentado preparar para lhe suceder no domínio dos arredores. Depois, encontrara, por chaparros e matos velhos, marcas evidentes de machos novos, dispostos a contestar-lhe os direitos de padreação na próxima época de cio, o que o tinha deixado alarmado. Não que se sentisse velho, mas na verdade ia para os nove anos, o que, para a família, era já uma idade respeitável. Mesmo o pai, que não conhecera, não tinha atingido tanto ano. Contara-lhe a mãe, que o criara com tanto desvelo e sapiência, que o pai tinha sido entalado num gancho clandestino, fora de época, aos cinco anos.
Desde que se emancipara fora sempre um vagueante solitário, percorrendo os vales e serranias de muitos quilómetros em redor, sem procurar constituir família certa, nem coberto para mais que alguns dias. É claro que tinha uma vasta descendência povoando as terras, mas deixava os cuidados da criação às fêmeas que escolhia para mães dos seus filhos. Na altura própria, aparecia reclamando o seu harém, tratava e cortejava todas quantas podia favorecer com os seus genes de boa casta, e depois adeusinho até para o ano, que cá o rapaz vai à vida. Bastava saber-se que ele voltara, e mais não era preciso para afastar qualquer candidato a substituto. Nunca tinha necessitado mais do que entreabrir a boca e deixar adivinhar um susto de navalhas respeitosas ou o retorcido poderoso das amoladeiras, para manter nos seus lugares os possíveis competidores.
Nem valia a pena lembrar aquela escaramuça desapropriada de gente de bem, no cio de há dois anos. Aquele arôcho metido a barrasco que lhe tentara denegrir pergaminhos...! Bem levara para o tabaco que nem se atrevera a aparecer de novo pela clareira da mata. E o maganão sabia da poda, que aquela estocada baixa que lhe tinha atirado ao pescoço e lhe abrira a pele, se não fossem os muitos anos de mato poderia ter sido mais grave, e tinha mesmo levado um tempão imenso para sarar. Ainda hoje, em certas voltas do codilho, sentia arreganhar a cicatriz do ferimento.
Fora então que decidira tomar companhia de serviçal, chamando para escudeiro um novato bem constituído de osso e carnes que encontrara chafurdando num lameiro, e que de pronto e respeitosamente lhe dera lugar no banho. Depois começara a seguir-lhe os passos de longe, imitando-lhe os modos e cuidados com que se esgueirava por entre as estevas, ou copiando-lhe as manhas com que entrava num milheiral para uma ceia de milho fresco e leitoso. Parecia ser mais esperto do que saíra, e acabara por ser tempo perdido ensinar um imbecil daqueles. À primeira esparrela caíra que nem um patinho... Verdade seja que o oponente era de respeito e muito saber, mas bem o tinha treinado para apertos desses. Ora se tinha dado com o caçador de tocaia, embora com a sorte do golpe de vento que lhe levara odores às ventas, e tendo na outra noite entrado tão bem a vento que nem preciso fora chegar-se muito para o saber à coca, para quê fazer asneira grossa logo de seguida? Estava mesmo a ver-se que na noite seguinte o inimigo não estaria no mesmo sítio, e sem saber ao certo onde andaria, não era de se ter precipitado assim..! O resultado fora ter ficado seco com um único tiro, que nem soubera donde partira. Paciência..! Agora, de novo só como tinha vivido a maior parte da vida, assim continuaria até ao fim dos seus dias. Aprendizes, nunca mais...!
E pronto, lá estava de novo o velho solitário, melancólico e rezingão, pateando por entre os matos à toa. A lua só mais tarde apareceria, e o calor que todo o dia se fizera sentir mais a carga de carrapatos que lhe tinham atacado o ninho, davam-lhe uma vontade imensa dum banho fresco. Despreocupado, a vaguear no escuro, fora sem rumo até aquela poça lamacenta, agora quase seca, esfregar-se na lama avermelhada que muito o livrava de parasitas. Dali para o chaparro costumado, numa delícia de coceira, em passos tanta vez repetidos. Hoje nem mesmo com o tratamento habitual se vira livre da bicharada importuna. Era um daqueles dias em que só mesmo uma boa esfregadela com gasóleo daria algum alívio. Mas nesta altura do ano não havia tractores esquecidos pelos campos, em cujos depósitos se pudesse consolar.
De repente sentiu fome. Se bem que ultimamente se tivesse contentado com pouca coisa, o ar da noite, agora já mais fresco, abrira-lhe o apetite. O acaso levara-o ao vale fatídico de há dois meses, e, numa volta da vereda, sentira o cheiro do combustível que tanto apreciava na limpeza. A noite ainda sem lua dava-lhe cobertura para indagar do forte aroma, e quando encontrou uma cova de lama remexida e gordurenta do óleo queimado foi a felicidade suprema. Rebolado, esfregado e recoberto com o acre odor, por ali se quedou tempos esquecidos a gozar a noite.
Sem quase dar por isso, chegara à borda do mato num claro em que pastavam, regaladas, duas fêmeas com meia dúzia de crias. A fome de há bocado voltara. Quando apareceu, tudo parara a comezaina e se chegara para o canto mais afastado da clareira, num silêncio respeitoso para com o senhor que, de ouvido apurado, escutara por algum tempo os rumores da noite. Tudo era silêncio e calma. Os primeiros raios de luar mal davam para iluminar a fiada de grãos de trigo espalhados pelo chão. De nariz no ar ventejara os ares nocturnos, mas apenas as emanações do cereal lhe tinham enchido os sentidos. Só muito tempo passado se decidira a participar da ceia comunitária. Quando começou a comer foi como se tivesse convidado os riscados que avançaram gulosos para a comida. As suas silhuetas rasteiras contrastavam com a mole imensa do patriarca. Estava tão desinteressado de tudo que nem assoprara aos pequenos um assomo de boa educação, e quando o estrondo do tiro fizera fugir toda a bicharada, ele não dera por nada...
Teria continuado a mastigar as suas recordações se o coração, varado pela bala, não lhe tivesse dito que estava morto...!!
Postor, Jul 90
Naquele tempo ainda se ia de véspera para as montarias no Alentejo, pois as estradas eram estreitas e cheias de curvas, mesmo as principais. As auto estradas de hoje, que permitem aos heróis ir de Lisboa a Barrancos, a voar baixinho, em menos de duas horas e meia, só existiam no papel de projectos futuristas. Assim, pernoitava-se em Moura no hotel das águas, e de manhã lá se faziam os cinquenta quilómetros finais até à Contenda.
O interveniente nesta história mais uma vez percorreu os passos deste calvário obrigatório para os viciados nas emoções da caça grossa deste país. Chegara ao hotel ao fim da tarde e, depois de arrumadas as armas e bagagens no quarto, fora até ao bar cumprimentar amigos e conhecidos, para se inteirar das perspectivas para a caçada, e do estado previsível da mancha. Ali se encontravam os habituais frequentadores destas lides, em amena cavaqueira ou numa mais acesa discussão cinegética, fazendo horas para o jantar.
Depois, e segundo as suas preferências particulares, lá se iam dispersando pelos restaurantes da terra, por sinal bem provida de bons locais de farta petisqueira. Tal como em outras ocasiões a escolha recaiu numa tasquinha do jardim próximo, junto às bombas de gasolina, célebre pela excelência dos seus pitéus. Nunca ali faltava, em tempo de caça, a perdiz e o coelho bravo fritos em pedaços lourinhos, os tordos estrugidos em azeite e alho, ou umas febras e entrecosto de javali, grelhados no lume de carvão. Se juntarmos a estes pratos uns túbaros de tomatada ou uns achigãs de escabeche, tudo regado por um generoso tinto regional, nada faltará para acompanhar uns queijinhos de meia cura ou as fasquilhinhas de presunto de porco preto com que se começava a função. Depois era só deixar o tempo correr vagaroso até o estômago se fartar com o banquete, e o espírito se encher de sonhos com as conversas que inevitavelmente se centravam nos javardos.
De volta ao hotel, nem o passeio nocturno nem mais uns digestivos tomados para a sossega chegaram ao nosso amigo para facilitar uma digestão que se afigurava problemática. Toda a noite se revolveu pelos lençóis procurando alívio para os excessos da jantarada, e, de manhã, quando o despertador o chamou para as suas devoções, ainda se sentia enfartado e cheio como um odre. Mesmo assim, foi, como todos os outros, tomar o costumeiro pequeno-almoço ao balcão do mercado municipal, bebericando uma caneca de café de peúga, adoçado com açúcar amarelo e com cheirinho, para empurrar uma fartura, acabada de fritar.
Enfim, era um tratamento completo...
Chegava entretanto a hora e lá partiam, para a etapa final, via Safara e Santo Aleixo até à Contenda, pelas famigeradas curvas da estreita estrada de Barrancos. Finalmente chegou à concentração no largo da herdade, frente ao casão grande, onde mais tarde se expunha o quadro de caça, se iam abrir as rezes e fazer o leilão das carcaças.
Era altura de cumprir mais uma peregrinação obrigatória. Havia que ir mostrar as licenças de caça e conferir os documentos de inscrição para a montaria, ou mesmo efectuar um pagamento de última hora. Ali se iam encontrando amigos e conhecidos, alguns que já se não viam há tempos, quantas vezes desde o ano anterior.
Como nessa época não havia ainda os luxos de pequeno-almoço e almoço incluídos no preço da montaria, todos levavam os seus farnéis, primando pelo que de melhor tivessem em casa, cruzando-se as ofertas de prova, dos mimos de cada cesta. É com imensa saudade que se recorda essa convivência entre amigos e companheiros do mesmo ofício, que hoje se torna impossível de encontrar, dada a proliferação de atrasados e apressados, mais interessados em estar e ser vistos, do que em caçar.
Cumpriu ele também esta parte burocrática e depois de mais uma prova aqui e dum trago ali, aprestou-se para a última fase antes da saída para as portas.
- Senhores monteiros... sorteio ...!
Com este anúncio sobressaindo em forte berro da vozearia dos presentes e do laticar rosnento da cachorrada, se juntaram os caçadores em semi círculo, frente à mesa onde estavam os envelopes com os números das portas. Por detrás dos organizadores, o director de montaria, aguardava um pouco de silêncio para começar o sorteio. Um dos responsáveis abriu a cerimónia com um bom dia de boas vindas e agradecimento pela presença de tantos e bons amigos. Em verdade era mais de notar a qualidade do que a quantidade, pois o número de portas era bem menor que a demanda de lugares. Passou então a palavra ao director de montaria para a habitual arenga em prole do bom senso e compostura durante a caçada, assim como a necessária atenção e cuidado com os tiros que se fizessem. Embora todos saibam que na mancha andam além das rezes em fuga, os cães e matilheiros, nunca é demais relembrar aos espíritos mais descuidados as regras elementares para que tudo corra sem acidentes. E mesmo assim... às vezes há um azar...
O nosso amigo a tudo isto assistiu com impaciência pois que as sucessivas cargas de comida que ingerira desde a véspera mais as provas da manhã lhe haviam provocado um começo de indisposição estomacal. Tirou, do saco do sorteio, a sua porta, verificou qual a armada e o postor que lhe cabiam, e ala para a caixa do reboque que o levaria, e aos companheiros, para a mancha.
Ainda não estavam em moda os jipes e viaturas todo o terreno como agora é uso, e o transporte dos caçadores era feito em reboques de carga e trabalhos agrícolas, puxados por um tractor, só até à cabeça da armada. Toda a comodidade destes transportes se resumia a uns quantos fardos de palha a servir de assentos, quando os havia... Depois, era corda nos sapatinhos e trepa aqui, escorrega ali pelos trilhos e veredas do mato seguindo o passo lesto do postor que, um a um, ia deixando os caçadores nas suas portas.
Todas estas andanças pouco ou nada contribuíram para melhorar a má disposição do nosso enfartado monteiro. Foi já com alguma dificuldade e um princípio de dor no ventre que chegou ao seu posto. Não era de fácil acesso, quase ao fundo de um barranco, com mato forte e silvados espessos, mas na encosta em frente havia algumas veredas de caça bem seguidas e de forte crença. Preparou o local como melhor lhe pareceu e cogitou com os seus botões a boa escolha que fizera em relação à arma a usar em tal posto. Elegera para esse dia uma carabina Winchester, de alavanca, em calibre 30-30, arma curta e de fácil manejo numa porta tão apertada. Era uma das mais indicadas para tiros rápidos e de certeza bem perto, como a localização do posto requeria. Estas Winchester, assim como as Marlin neste mesmo calibre, eram armas muito usadas e procuradas por quem se iniciava na caça ao javali, pelo seu uso e manutenção fáceis, bem assim como pelo custo, que estava ao alcance de qualquer bolsa. Quem não se lembra da arma usada pelo grande John Wayne, sherif dos filmes de cow-boys. Com ela até fazia voar as latas vazias do feijão do almoço, com tiros sucessivos.
Pois o protagonista desta aventura, já com tudo pronto para a montaria e com boas esperanças no seu posto, começou a sentir então não apenas o tal incómodo doloroso, mas agora já uma pressão nas tripas, que nada de bom lhe augurava. Qual de nós não passou já por um transe destes e, tal como ele, sem socorro à vista...?
Olhou em volta procurando um lugar mais recôndito e apropriado para resolver o seu problema, e afastou-se da sua porta apenas o espaço suficiente para que o seu alívio não prejudicasse o posto nem a caçada. Com tanto desespero nem reparou que tinha levado nas mãos a carabina, que encostou ao chaparro a que se arrimara enquanto se aliviava. Quase no fim de tão penoso transe os seus olhos errando pelas estevas deram com um outro par de olhos que o miravam de soslaio. Do outro lado do barranco mas apenas a uns escassos quinze metros, um javardo duns trinta e tal quilos assistia interessado ao espectáculo.
Tal como o outro, não teve tempo para pensar duas vezes nem achar melhor solução. Deitou mão à carabina e lá vai chumbo, mas a posição de tiro, pouco ortodoxa, não lhe permitiu o resultado pretendido. O tiro ecoou pela encosta despertando do silencioso sono matinal uma vara porcos que por ali se acoitara. Agora já com a arma bem segura e apontada, quando um dos porcos atravessou o barranco, o disparo foi certeiro.
O ff.sh.tt...PUM ..!!! do morteiro indicando que a montaria ia começar foi apanhá-lo naquela posição caricata, com carabina nas mãos apontada ao resmalhar das estevas na encosta fronteira, e as calças enrodilhadas nos tornozelos, caídas sobre os canos das botas. Uma escassa dezena de metros à sua frente, o barrasco esperneava os últimos alentos de vida, meio oculto pelas estevas na borda dum silvado.
Abençoada seja a sorte dos inocentes, que os deixa matar porcos até de calças na mão....
DEO GRACIAS
Montaria na Contenda, Gancho do Tio Caleiro, Porta nº 7 Fev. 1987 ( adaptado)